Na Galiza, entre mosteiros e fervenzas
Há quem defenda que português e galego são uma e a mesma língua. Na verdade há muitas palavras galegas iguais às nossas, e diferentes das mesmas palavras em espanhol. Querem alguns exemplos? Mosteiro, castelo, ermida, setembro, comunidade, priorado… e até mesmo galego (que em castelhano se escreve gallego, os “ll” pronunciando-se como o nosso “lh”). E depois há outras que são completamente diferentes – mas que será boa ideia conhecermos, pois em viagem pela Galiza esse desconhecimento pode fazer-nos passar ao lado e ignorar lugares absolutamente fascinantes. Prestem sobretudo muita atenção quando lerem fragas, fervenza ou pozo. Porquê? Já vão perceber…
A Galiza, que é uma comunidade autónoma espanhola com uma identidade linguística e cultural própria, tem uma área de praticamente 30 mil km2 – quase um terço da dimensão de Portugal (mais ou menos o tamanho de todo o Alentejo). Se olharmos para um mapa físico de Espanha, facilmente percebemos que a cor dominante na região é o verde, em franco contraste com a maior parte do resto do país. Tanto verde só pode ser bom sinal, e a verdade é que a Galiza tem muito a descobrir para além dos sítios do costume que quase todos já visitámos, como Santiago de Compostela, Vigo, Corunha ou Tui. Foi por isso que decidi aproveitar um fim-de-semana para ir conhecer um desses bocadinhos verdes que já andava a despertar a minha curiosidade há algum tempo, e de que só ouvia dizer maravilhas: as Fragas do Eume.
Em galego, fraga significa floresta com árvores de diferentes espécies, e neste caso específico estamos a falar de um Parque Natural com mais de 9000 hectares, praticamente desabitado, com uma das florestas ribeirinhas melhor conservadas e mais virgens da Europa, sobretudo ocupada por carvalhos e castanheiros mas também por freixos, amieiros e teixos, bétulas, medronheiros, azevinhos, loureiros e até mesmo sobreiros, mais de 20 espécies de fetos e (imagine-se!) 200 espécies de líquenes – o que faz com que mesmo no Inverno as fragas ofereçam aos nossos olhos uma variedade infindável de matizes de verde, aliados aos castanhos das folhas que invadem o chão. Se a isto somarmos um rio – o Eume – que aqui, já perto do mar, corre rápido e caudaloso, alimentado por vários outros rios e regos que escorrem pelas encostas e se despencam em pozos e fervenzas, em cujas margens encontramos moinhos de água em ruínas e mosteiros românicos… bom, já estão a imaginar, não estão?
Eu também imaginava que fosse bonito, mas apesar disso não estava preparada para tanta beleza.
Existem quatro pontos de entrada no Parque mas o principal, por ser o mais vistoso, é aquele a que se acede passando por Pontedeume, uma vila costeira das Rías Altas situada entre Corunha e Ferrol. Antes de Pontedeume fizemos um pequeno desvio para conhecer a Ermida de San Miguel de Breamo, uma igreja românica construída em 1187 que é cenário de duas concorridas romarias anuais. É o que resta do antigo mosteiro com o mesmo nome, que referências documentais indicam já existia no séc. X. Isolada num sítio tranquilo, a 300 metros de altura, rodeada de árvores, cada uma das faces da ermida é diferente das outras, num jogo de volumes irregulares que quebram a severidade da pedra cinzenta. Tem ao pé um arejado parque de merendas, com ar de ser deliciosamente fresco no Verão.
De Pontedeume até ao Centro de Interpretação das Fragas do Eume são apenas 6 quilómetros, mas é o suficiente para a paisagem mudar radicalmente. No Verão e na Semana Santa este acesso ao Parque fica vedado aos carros, sendo disponibilizado um autocarro que faz o transporte entre o Centro e a ponte de Caaveiro, 7 km e meio mais à frente. Na época baixa não há qualquer restrição e os veículos circulam à vontade, mas a verdade é que a melhor maneira de desfrutar do passeio é a pé, por isso deixámos o carro junto ao abrigo de pescadores de Cal Grande e seguimos pela estrada que acompanha o rio.
Apesar da distância, o percurso faz-se bem, pois praticamente não tem inclinações e o piso é asfaltado. A cada curva do caminho vão-se sucedendo os motivos de interesse: uma ponte pênsil aqui, um rápido no rio acolá, letreiros com os nomes arrevesados dos locais de pesca, mais adiante uma casa onde um cão sinaliza a nossa passagem a ladrar. E árvores, muitas árvores, altíssimas algumas delas, outras meio caídas ou até mesmo mortas dentro do rio, árvores com os troncos cobertos de líquenes, ou de musgo, ou de hera. De vez em quando há uma ribeira que se precipita em pequenas cascatas pela encosta abaixo, passando sob a estrada para ir engrossar o Eume. A maioria das árvores são carvalhos e castanheiros e nesta altura do ano estão completamente despidas, o que nos permite nunca deixar de ver o rio durante toda a caminhada. Estamos na floresta, mas rodeados de água – e esta é mais uma das vantagens de viajar no Inverno.
Infelizmente, esta região fabulosa também foi há alguns anos (em 2012) pasto de um enorme incêndio – obviamente provocado por mãos criminosas – que durou vários dias e queimou 750 hectares do Parque, obrigando à evacuação de casas e à intervenção do exército. Uma verdadeira catástrofe que deixou marcas e, tal como sucede no nosso país, os proprietários e habitantes locais queixam-se até agora de que nada continua a ser feito para prevenir estes flagelos.
No final da estrada, passando a ponte, uma subida de uns oito minutos leva-nos ao Mosteiro de San Xoán de Caaveiro. Diz a tradição que foi fundado por São Rosendo na primeira metade do séc. X para agregar alguns anacoretas que por ali viviam. Mas comprovado apenas está que foi primeiro um mosteiro beneditino e mais tarde, já no séc. XII, uma importante colegiada da Ordem de Santo Agostinho. Abandonado no séc. XVIII, só em 1896 D. Pio García Espinoza, proprietário dos terrenos onde se encontrava o mosteiro, iniciou a sua reconstrução parcial a partir da estrutura arruinada que ainda se mantinha de pé, reconstrução essa que foi mais tarde parada. Convertido em monumento histórico-artístico em 1975, foi finalmente reabilitado (a reabilitação até mereceu um prémio europeu) e abriu ao público em 2006. O acesso é livre e na época alta há visitas guiadas todos os dias, em vários horários. Logo à entrada do conjunto do mosteiro, a antiga Casa do Forno foi adaptada para abrigar os sanitários públicos e, por cima, uma Taverna simpática e acolhedora (mas previnam-se atempadamente com dinheiro, que por ali rede de comunicações é coisa que não há…).
Os vários edifícios de tamanho modesto que compõem o Mosteiro de Caaveiro são simples na sua traça românica, em pedra granítica cinzenta que os séculos marcaram com diversas tonalidades e já misturada com xisto e outros materiais, fruto das sucessivas reconstruções. Das duas igrejas iniciais hoje só resta uma, a de Santa Isabel, que servia para os enterramentos. O elemento mais chamativo do conjunto é a abside semicircular, bem visível quando subimos para entrar pela Portaria Alta. O despojamento do interior dos edifícios está parcialmente aproveitado com exposições minimalistas sobre o mosteiro e algumas personalidades que a ele estiveram ligadas.
Apesar da simplicidade, o espaço reflecte um encanto especial. Equilibrado numa escarpa rochosa, como que suspenso sobre o rio, frágil na sua quase imaterialidade e na sua exposição aos elementos, é um ninho de águia que nos oferece vistas fabulosas sobre o vale do Eume, tão bonito visto de cima quanto lá em baixo.
Uma descida empedrada leva-nos depois até ao rio Sesín, um afluente do Eume, transposto por uma antiquíssima ponte em pedra e com as ruínas de um moinho de água mesmo ao lado. Ali o rio desdobra-se em vários cursos de água, cada um escorrendo entre pedras diferentes, ou saltando sobre elas, e nessas pedras nascem árvores e fetos, num cenário quase surreal.
No regresso ao carro decidimos aventurar-nos na Senda dos Encomendeiros, um trilho na margem do Eume oposta à da estrada, que nos oferece uma perspectiva mais “selvagem” do Parque. Nesta altura do ano, com o piso muito húmido, barrento e por vezes escorregadio, e o rio a invadir o caminho nalguns sítios, obrigando a desvios pouco lineares, somando-lhe dois troços mais difíceis com subidas e descidas íngremes sobre pedras (um dos locais só é ultrapassável com o auxílio de umas cordas ali colocadas para o efeito), e com a pouca luz do fim de tarde que mal penetrava no arvoredo, posso dizer-vos que percorrer os 2,5 km até à ponte suspensa de Fornelos foi uma aventura e pêras. Aqui decidimos cruzar a ponte e voltar à estrada, embora o trilho só termine na ponte de Cal Grande, pois a noite já se aproximava e não se conseguia ver praticamente nada. Apesar de estar considerado como de dificuldade moderada, só o aconselho a quem estiver em boa forma física e for de espírito persistente – e, mesmo assim, apenas numa altura do ano em que esteja mais seco.
As “aventuras” do segundo dia começaram mais a norte, em Naraío. Não sendo o motivo principal da visita, o castelo foi a primeira paragem. Abandonado no séc. XVII, muitas das suas pedras foram utilizadas como material de construção para casas erguidas nos arredores, e até mesmo para a represa e a central hidroeléctrica construídas junto à sua base, no rio Castro, por isso o que chegou aos nossos dias é pouco mais do que uma ruína deste exemplar de arquitectura militar em estilo gótico do séc. XIV – mas cujas origens remontam muito provavelmente ao séc. II, pelo menos. Do antigo Castelo de Naraío hoje permanecem de pé a Porta de Armas e mais algumas portas, a Torre de Menagem, que é de planta quadrada, restos de três muralhas perimetrais, que em tempos fizeram deste castelo uma fortaleza inconquistável, e mais alguns vestígios arqueológicos.
O que faz deste castelo um dos melhores exemplos da arquitectura defensiva medieval não é portanto o seu bom estado de conservação, nem qualquer originalidade na sua concepção inicial, mas antes a sua situação estratégica e singularidade de implantação, a uns respeitáveis 300 ou mais metros de altura sobre um penhasco rochoso, que nalguns sítios faz mesmo parte dos seus muros. E também a sua adaptação ao meio e à beleza do lugar em que foi erigido, a bonita paisagem natural da zona protegida dos rios Xuvia e Castro.
Mas como vos disse, o castelo não foi a razão maior que nos levou até àquele lugar. Descendo a encosta do lado direito, por um trilho entre o castelo e uma das casas que estão construídas mesmo ao pé, aproximamo-nos do (bastante modesto) edifício branco da central hidro-eléctrica, onde o Castro corre e salta sobre pedras, e passa ao lado de um também já abandonado moinho de água. Antes de chegarmos à estrada que termina junto à central, um atalho leva-nos para a esquerda por entre as árvores, e foi por aí que seguimos. O barulho da água já se ouvia, mas mesmo assim a surpresa foi grande quando finalmente deparámos com a fervenza de Naraío.
Fervenza, como já devem ter percebido, significa “cascata” em galego. E cascatas é coisa que não falta na Galiza, há-as por todos os lados e de todos os feitios e tamanhos. Deu-se a coincidência de na noite anterior ter chovido este mundo e o outro, a noite toda sem parar, e isso teve consequências – fantásticas, neste caso. A água jorrava em catadupas, milhares de litros de água precipitando-se do alto de seis metros, altura modesta mas ainda assim suficiente para causar um efeito impressionante. Uma jovem que andava a passear os cães e nos acompanhou no trilho até à fervenza disse-nos que no Verão é habitual usarem o lugar como piscina, e mostrou-nos fotos. A diferença é absolutamente inacreditável! Ela própria estava pasmada, vive ali perto e vai muitas vezes à cascata, mas nunca a tinha visto com tanta água. Uma maravilha!
A caminho do destino seguinte, fizemos uma breve paragem em As Pontes de García Rodríguez, habitualmente apenas indicada como As Pontes. Ainda de longe adivinham-se as silhuetas da gigantesca central térmica, operada por uma conhecida empresa espanhola, mesmo à entrada da vila. É a maior do país, e entre os vários e enormes edifícios destaca-se a chaminé, que tem 356 metros de altura e é a construção mais alta de Espanha e a chaminé com mais volume do mundo. Como se este aparato todo não fosse já suficientemente surreal, aninha-se ali mesmo ao lado, qual David junto a Golias e tão escondido que podemos passar na estrada sem dar por ele, o conjunto arquitectónico de Vilavella: três casas abandonadas e semi-recuperadas, parcialmente invadidas pela vegetação, um pequeno espigueiro, um cruzeiro e uma igreja.
A história desta espécie de enclave discordante prende-se com a de As Pontes e do lago que lhe está adjacente. Durante várias décadas, no espaço hoje ocupado pelo lago existiu uma exploração mineira de lignito – a maior a céu aberto do território espanhol – que a partir dos anos 70 do século passado passou a ser operada, em parceria com o Estado, pela empresa que já explorava a central térmica. A exploração desta mina provocou o desaparecimento de muitas aldeias, a maioria delas pertencendo à paróquia de Vilavella, e com o encerramento da exploração em 2007 foi decidido que a mina e a escombreira seriam inundadas e transformadas num lago artificial com duas ilhas. O processo de inundação ocorreu de 2008 a 2012 e dele resultou um lago com cerca de 8 quilómetros quadrados, agora parcialmente utilizado como praia fluvial.
Para memória futura, junto à depuradora foram reabilitadas algumas construções rústicas, supostamente destinadas a um futuro núcleo museológico das peças arqueológicas da mina. No entanto, nesta altura o único edifício ainda visivelmente utilizado é a igreja, com origens no séc. XIII e actualmente dedicada a Santa Maria, que tem anexado um pequeno e curioso cemitério quase essencialmente constituído por gavetões encostados aos muros, na vertical, e umas poucas campas assinaladas no solo.
A seguir, rumámos a sul em busca de mais uma cascata. A fervenza de As Panceiras, também conhecida como fervenza de Bermui, está bastante escondida e o acesso não está indicado, mas curiosamente não foi muito difícil dar com ela – bastou guiarmo-nos pelo Google Maps, estacionar no local que nos pareceu ser perto, e depois seguir o instinto e o som da água, que nos levou por um pequeno trilho entre áreas vedadas por arame farpado. O Rego das Foxas é um pequeno ribeiro que corre plano num lindíssimo bosque de carvalhos, até ser obrigado a vencer um desnível de 100 metros entre pedra xistosa para chegar ao vale do Eume – e é aqui que se formam várias cascatas em sequência, uma delas com quase 10 metros de altura. Logo no início do local onde descemos há um moinho abandonado, depois outro mais à frente, onde o desnível começa, e depois outros dois junto à cascata. Uma vez mais, o facto de ter chovido muito nessa noite proporcionou-nos um belíssimo espectáculo, com a água a cair em borbotões de espuma numa cascata superior, precipitando-se depois numa outra cascata da qual não se consegue ver o fim. O terreno aqui não é fácil e a grande inclinação torna impossível descer mais – mesmo para chegar à parte mais baixa tivemos de ter cuidado para não escorregar, e não houve como não molhar os ténis, já que a água escorria por todos os lados. Mas valeu tanto a pena! Ali sente-se realmente a força e a perfeição da natureza em estado selvagem, e não há como não ficar em êxtase com tanta beleza que nos rodeia.
Com o sol já a descer, a última paragem do dia foi para ver ao vivo mais um mosteiro, o de Santa María de Monfero. Afastado das rotas mais turísticas da Galiza, este ilustre desconhecido merece todos os desvios propositados para o visitar – mesmo que seja só exteriormente pois, por qualquer razão, estava fechado quando lá chegámos (apesar de ser suposto estar aberto ao público nos fins-de-semana, durante a época baixa). É, para lá de qualquer dúvida, um dos monumentos católicos mais originais que já vi até hoje.
No séc. X era uma ermida dedicada a São Marcos, reconstruída em 1134 e ampliada em estilo românico para se constituir em mosteiro beneditino e mais tarde cisterciense. Com uma dimensão imponente, atingiu grande importância na Galiza e possuiu uma das melhores bibliotecas da região. Uma catástrofe natural destruiu parte do conjunto no séc. XVII, incluindo uma das torres (atingida por um raio), após o que a igreja foi reconstruída com uma originalíssima fachada barroca, que inclui colunas com capitéis coríntios e um padrão em xadrez desenhado com granito e xisto. O mosteiro foi oficialmente extinto no séc. XIX e a maior parte dos seus edifícios está hoje em ruínas, apesar de uma intervenção entre 2009 e 2011 que se destinava a apoiar a reutilização das instalações como hotel e spa – projecto entretanto abandonado. Apenas a igreja continua a funcionar esporadicamente, pois o local é muito procurado durante o Verão para festas e romarias.
Esta minha breve (mas muito preenchida!) incursão em terras galegas deixou-me positivamente encantada, mas ao mesmo tempo com água na boca: encantada porque superou as minhas expectativas e gostei muito mais do que estava à espera; e a ansiar por mais, como sempre me acontece quando não tenho vontade de me vir embora de algum lugar.
Mapa do roteiro
Já seguem o Viajar Porque Sim no Instagram? É só clicar aqui ←
Outros posts sobre Espanha:
Primavera nas Astúrias - parte I
Primavera nas Astúrias - parte II
Os pueblos blancos da Andaluzia
7 cidades (menos conhecidas) para visitar em Espanha
Jerte, o vale das cerejeiras em flor
Gaztelugatxe, as escadas da Pedra do Dragão
Alarcón e os murais de Jesús Mateo
Outros posts com roteiros na Europa:
Primavera nas Astúrias - parte I
Primavera nas Astúrias - parte II
Os pueblos blancos da Andaluzia
Um cheirinho a sul de França - O roteiro completo
Coleccionar paisagens surreais na Islândia
Croácia - diário de viagem XVII - O roteiro completo
Dois dias em Bucareste - dia 1
Dois dias em Bucareste - dia 2
5 viagens de carro na Europa para 2021