Cevide, onde Portugal começa
Peguem num mapa e procurem a fronteira de Portugal com a Galiza. Percorram-na até à pontinha do lado direito, sempre acompanhando o rio Minho. Nesse local, o território português faz uma última incursão no país vizinho, na forma de uma língua de terra delimitada do lado direito pelo rio Trancoso. A confluência deste rio com o Minho marca a fronteira entre Portugal e Espanha, e é precisamente aqui, no ponto mais a norte do nosso país, que encontramos a pequeníssima aldeia que representa o último reduto português por estas bandas: Cevide.
Se o mapa for daqueles tradicionais, em papel, escusam de ir buscar uma lupa porque não vão encontrar lá a indicação de Cevide. Mas se estiverem no Google Maps e ampliarem um bocadinho irão conseguir localizar a aldeia: não mais de uma dezena de casas, rodeadas por alguns terrenos cultivados e muitas, muitas árvores.
E se estiverem mesmo atentos, talvez vos desperte o interesse uma outra legenda que aparece no Maps: marco nº 1 de Portugal. Sabem o que quer isto dizer? Quer dizer que é ali que encontramos o marco fronteiriço português que marca o início do nosso país, o lugar onde começa Portugal.
Falar em marcos fronteiriços quando há mais de vinte anos foram abolidas as fronteiras com Espanha – e por consequência com a maior parte dos países europeus – pode parecer um bocado chauvinista ou saudosista, mas acreditem que da minha parte isso não poderia corresponder menos à verdade. É no entanto precisamente por isso, por causa deste esbatimento de limites e desta “harmonização” em curso no nosso continente (já para não falar na globalização…) que se torna necessário preservar a memória da nossa identidade geográfica, cultural e humana – afinal, aquilo que faz de nós portugueses, além de europeus.
O meu cicerone em terras de Cevide, tal como já o fez com centenas de outras pessoas, chama-se Mário Monteiro e é um apaixonado pela sua terra natal. É ele quem desde há vários anos tem vindo a fazer um estóico esforço de divulgação da aldeia e da beleza do local, dando a conhecer a quem lá vai os segredos e as preciosidades escondidas do ponto mais setentrional do nosso país.
O Mário e a Lena, a mulher, são os donos da Quinta da Netinha, à qual pertence uma capela que, curiosamente, não está dentro do terreno da propriedade mas sim umas dezenas de metros mais à frente, seguindo por um caminho cimentado coberto por latadas. É dedicada a Santo António e sabe-se que data pelo menos do séc. XVIII, embora o ano que figura no exterior seja 1937, o ano em que foi reconstruída.
O interior da capela prima pela simplicidade e é encantador, pese embora esteja a precisar de obras de restauro. A parede onde se encontra o altar é toda em madeira, pintada de tons claros e com alguns ornamentos dourados. Uma das suas portas dá acesso à parte de trás do altar, e a outra à sacristia. A ara maciça, em granito claro, está mesmo encostada ao altar, o que não é muito comum nos dias de hoje mas se explica porque até 1969 as missas eram celebradas pelo Missal Romano e a posição mais comum do sacerdote na liturgia do Rito Romano era “de costas para o povo”.
Cevide tem actualmente apenas seis habitantes e o seu ambiente é pacato, mas tempos houve em que aqui não faltava movimento. Como em todas as terras raianas, o contrabando de bens e pessoas era uma das principais fontes de rendimento do lugar e fazia-se nos dois sentidos, obviamente que com a conivência dos agentes da autoridade responsáveis pela vigilância da fronteira. Foi, por isso, entre memórias de infância e histórias de contrabandistas, contadas pelo Mário com aquela entoação melodiosa tão peculiar do sotaque galego, que encetámos o percurso pela Caneija do Contrabando – um caminho apertado entre muros de pedra e vegetação densa que passa por cima das nossas cabeças, onde o sol não entra e o odor espesso do húmus invade o ar.
Se por aqui as fronteiras foram sempre tão fluidas, agora que já não existem fará sentido calcorrear umas centenas de metros por atalhos de terra que só conhece quem é dali, com mantas de folhas mortas e raízes de árvores a atraiçoarem-nos os passos, saltando aqui e trepando ali, só para ir ver o marco fronteiriço nº 1? Ah, podem crer que faz! Primeiro porque isto é o Alto Minho, a terra do verde, e passear por aqui já é só por si um prazer. Depois, porque a sensação é de que estamos num lugar especial que poucos conhecem e ainda é quase selvagem – embora a terra em redor do marco esteja bastante batida pelas solas dos sapatos dos visitantes.
O marco nº 1 está colocado sobre uma fraga que se ergue uns quantos metros acima do Trancoso. Descemos até ao rio, que depois das chuvas dos últimos tempos vai cheio e ruidoso, e o Mário e a Lena surpreendem-se: a foz do Trancoso modificou-se ligeiramente, está mais estreita. As chuvas copiosas aumentaram o caudal do rio, que arrastou com ele pedras e areia, acumulando-as de um dos lados, e agora que o nível das águas baixou o caminho mais desobstruído que elas encontraram para desaguarem no rio Minho foi este, menos amplo, entre árvores que praticamente formam um túnel. Mas como a natureza sabe bem o que faz, no local onde a água já não passa nasceu agora uma encantadora praia de areia clara, absolutamente impoluta, que provavelmente fomos das primeiras pessoas a pisar. Uma prainha intocada e rodeada de árvores, com água translúcida – bastante fria, mas onde me soube pela vida molhar os pés nessa tarde quente… – perfeita para os dias de Verão.
Uma ponte pênsil de madeira, rústica mas segura, leva-nos para terras de Espanha. Cevide passa a ser Acivido, mas as diferenças são poucas. Também aqui existe um marco com o nº 1, mas este tem um E em vez de um P e está acompanhado de um painel solar e uma caixa de distribuição que diz pertencer a um sistema de informação meteorológica. E também aqui existe uma praia, mas esta tem gente, três rapazes que aproveitam o final da tarde para se refrescarem. Desta praia subimos pelo que resta de uma estrada romana até às primeiras casas da aldeia galega, onde o Mário cumprimenta um português que ali vive há cerca de 40 anos. Uma prova mais de que a diáspora portuguesa nem sempre se faz para muito longe da mãe pátria.
O rio Trancoso nasce em Portelinha, perto de Castro Laboreiro, e no seu percurso de 13,6 km define maioritariamente a fronteira entre Portugal e Espanha nesta região minhota. Por ser uma zona pouco povoada e portanto ainda com muita qualidade ecológica, com boa conservação das ribeiras e suas margens, e consequentemente das suas águas, existe um plano hidrológico conjunto de Portugal e Espanha para a classificar como Reserva Natural Fluvial Internacional. Mas Padrenda, o município espanhol onde estamos, já se adiantou e reconheceu o potencial paisagístico do “río Troncoso ou Barxas”, os dois nomes pelos quais se referem ao Trancoso, tendo criado na sua margem uma ecovia de meia dúzia de quilómetros com uma vedação de madeira, que acompanha o rio no seu percurso de ressaltos sucessivos sobre pedras já muito polidas pela água.
Uma outra ponte traz-nos de regresso a Portugal. Maior e mais sólida do que a primeira, assinala a rigor a linha incorpórea que separa os dois países e termina, do nosso lado, junto à casa que abrigou em tempos a Guarda Fiscal – hoje propriedade privada. O marco ainda lá está de pé, indicando que aquele foi em tempos o posto nº 451. Embutido na parede da casa, um nicho abriga uma imagem rústica de Santo António, esculpida em granito e devidamente protegida por um gradeamento. O nosso santo mais internacional parece ser bastante popular por estas bandas.
O caminho a que prosaicamente chamaram do Posto guia-nos de volta à aldeia e à Quinta da Netinha, onde a casa grande aguarda a oportunidade de ser transformada em alojamento de turismo rural. Há projectos para colocar Cevide definitivamente no mapa como lugar obrigatório de visita, mas no nosso jardim à beira-mar plantado o boom do turismo ainda não chegou a este canto do Minho. Tal como ainda não chegou a prometida ciclovia que está prevista para ligar Melgaço a Cevide, nem chegaram as também prometidas melhorias no acesso ao marco nº 1.
A demora pode ser exasperante, mas apesar disso o Mário não baixa os braços e continua activo na divulgação da sua aldeia, promovendo-a por todas as formas que estão ao seu alcance, desde os media às redes sociais. Criou uma página web com informações sobre Cevide e o grupo Amigos de Cevide no Facebook, que já conta com vários milhares de membros.
Quanto a mim, saí de Cevide encantada. Começa a ser difícil encontrar no nosso país locais ainda tão originais e inalterados como esta aldeia, e a tendência é mesmo que um dia venham a desaparecer completamente. São lugares como este que me deixam dividida entre o gosto de partilhar as minhas boas “descobertas” com toda a gente, e a vontade de guardar estes pequenos segredos só para mim e para quem me está mais próximo. Por isso vos digo: vão lá; vão conhecer este nosso pedacinho do Portugal ainda profundo, antes que comece a andar nas bocas do mundo e desapareça uma parte do seu carácter único. Quando lá estiverem vão sentir-se como eu: privilegiados.
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