Rótulos
Viajar é uma actividade que está na moda e tem vindo com o tempo a tornar-se acessível a cada vez mais pessoas. No entanto, o acto de viajar continua a estar envolvido numa aura de encanto, ainda hoje associado a um certo “glamour” e a determinados estilos de vida, e permanece para muitos no departamento dos sonhos inatingíveis. Como tal, é uma área onde se concentram algumas atenções, e como o ser humano gosta de categorias e rótulos também aqui está na moda encontrar definições para “encaixar” quem viaja.
Não sendo mediática como um qualquer casamento real nem sequer fracturante como… sei lá… por exemplo um jogo de futebol entre o Chaves e o Tondela (já nem falo nos sucessivos escândalos sportinguistas, entre outros…), a questão “empolada” da dicotomia turista/viajante anda há já algum tempo a mexer-me com os nervos.
Segundo algumas supostas mentes iluminadas, existe uma diferença nítida entre as pessoas que são viajantes e as que são turistas, e que se prende sobretudo com o modo e a intenção das suas viagens. Vejamos as premissas em que assenta esta diferença:
- o turista viaja essencialmente por entretenimento e diversão, procura uma gratificação imediata, enquanto para o viajante o importante é estabelecer relações com outras culturas, interagir;
- o turista viaja sobretudo em grupo, gosta de viagens organizadas, de circuitos turísticos pré-feitos, socorre-se de agências e de guias de viagem, enquanto o viajante gosta da descoberta, de viajar sem planos nem objectivos, e de preferência sem datas;
- o turista está interessado em visitar os locais mais famosos, ver o máximo possível no mínimo tempo, como quem despacha uma lista de supermercado, tirar meia dúzia de selfies e partir para o bilhete-postal seguinte, enquanto o viajante quer experienciar tudo o que for possível, conhecer até os recantos mais obscuros, ir onde só os habitantes locais vão, explorar até ao detalhe;
- o turista gosta de ficar bem instalado, comer bem, viajar confortavelmente, enquanto para o viajante o importante é mergulhar na cultura local, dormir onde for possível, comer o que calhar, andar a pé, de bicicleta ou em transportes locais;
- o turista não quer saber da pegada ecológica que deixa ou do ruído que faz, propagandeia aos quatro ventos os seus comentários desfavoráveis sobre tudo o que vê, é opinioso e muitas vezes incomodativo, enquanto o viajante respeita criteriosamente os costumes locais, aceita e tenta compreender até mesmo as práticas menos lógicas e tenta misturar-se e passar quase despercebido.
Resumindo: o turista é uma ofensa, o viajante é um ser excepcional.
E perante isto, quem é que quer ser rotulado de turista? Ninguém, claro. Os turistas são o lado negro da força que é preciso exterminar para que não venham a dominar o universo, ou então converter à doutrina a pender para o snob dos auto-proclamados viajantes.
Como sucede com qualquer categorização rígida que não tem em conta os vários tons de cinzento, esta distinção que faz de uns anjos e de outros demónios parece-me muito redutora. Na verdade, cada pessoa tem uma forma diferente de viajar. Mais ainda: embora a grande maioria das pessoas tenha tendência para adoptar sempre um mesmo estilo de viagens, pode muito bem suceder que até goste de experimentar opções diferentes de vez em quando, ou que ao longo da vida venha a alterar as suas preferências e motivações. Se aos vinte anos partir à aventura por tempo indeterminado e só com uma mochila às costas, dormindo em sofás, beliches ou tendas, e caminhando diariamente muitos quilómetros a pé pode ser facilmente realizável, aos quarenta ou aos sessenta – até por razões diversas – já poderá não o ser. Se tenho curiosidade em saber como é fazer um cruzeiro e uns tempos depois opto por ir passar umas pacatas semanas numa aldeia galega, isso faz de mim uma turista, ou uma viajante? Se passo três dias na Disneyland de Paris e depois meto-me num comboio, vou ficar em casa de amigos em Azay-le-Rideau e dedico as semanas seguintes a ajudá-los na padaria de que são donos e a percorrer de bicicleta partes do vale do Loire, sou o quê? E se calhar no ano a seguir pode apetecer-me ficar um tempão de papo para o ar numa qualquer estância turística caribenha, ou ir a Timor para saber como se vive em Lospalos ou Bobonaro…
Quando é que nos deixamos destas coisas de rotular tudo e mais alguma coisa? Qual é a vantagem destes rótulos? Mostrar que eu sou mais eu e sou melhor que os outros? Sim, é verdade que quando viajamos devemos ser conscienciosos e respeitar os lugares que visitamos – mas este comportamento é válido para todos os dias da nossa vida. E é também verdade que o turismo de massas e em massa traz problemas acrescidos a muitas cidades e regiões, reduz em certos aspectos a qualidade de quem as habita, mexe com a economia tanto negativa quanto positivamente (e basta olhar para o nosso país para perceber isso). Mas vamos lá saber: se há lugares bonitos no mundo, monumentos fantásticos que merecem ser apreciados ao vivo, museus com espólios únicos que se calhar só temos oportunidade de ver uma vez na vida, porque é que não teremos direito a vê-los só porque são ou estão em sítios rotulados de “turísticos”? A maioria de nós não tem todo o tempo do mundo para viajar, a maioria de nós tem trabalho fixo e apenas algumas semanas de férias por ano, e cada um tem o direito de aproveitar esse tempo livre a viajar, se quiser, e a viajar como achar melhor sem por isso ser considerado quase um criminoso. E sejamos sinceros: muitos dos que se consideram “viajantes” também acabam por escolher fixar-se num sítio, ou ter de regressar a casa, quem sabe até ao mesmo trabalho – e um dia, quando dão por eles, descobrem que afinal se transformaram em “turistas”. É a vida, amigos, e a vida não quer saber de rótulos para nada.
Quanto a mim, podem chamar-me o que quiserem, que eu não me ralo. Eu quero é viajar.
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