Há lugares que têm uma atmosfera especial. Acabamos de chegar e pensamos: “Eu queria viver aqui, este é o meu lugar”. Quando viajamos temos a sorte de por vezes “tropeçarmos” em lugares assim, que ficam na nossa memória e no nosso coração para sempre. Mesmo que nunca mais lá voltemos.
Cadaquès é, para mim, um desses lugares. Surgiu assim por acaso, no final de um Verão, numas curtas férias de carro, já de regresso a Portugal depois de termos visitado o principal objectivo da nossa viagem. Algures nos Pirinéus, olhámos para o mapa: “E agora onde é que vamos?” Os olhos pousaram em Girona e um bocadinho acima lá estava, mesmo na pontinha de Espanha: Cadaquès. Lembrei-me vagamente de um ou dois artigos lidos em revistas, veio-me à memória o nome de Dalí. E decidimos ir.
A surpresa de ver Cadaquès é tanto mais agradável quanto a região que se atravessa antes de lá chegar é desprovida de encanto. Cadaquès fica junto ao Cabo Creus, o ponto mais oriental da Espanha, no extremo nordeste da Catalunha, uma zona que é na generalidade pouco interessante em termos paisagísticos e urbanísticos, tão decepcionante que até faz duvidar do que vamos encontrar mais à frente. Só quando entramos na região acidentada que caracteriza o Parque Natural Cadaquès–Cap de Creus, alguns quilómetros antes da localidade propriamente dita, é que a mudança acontece. São curvas e contracurvas no meio de colinas cobertas de uma vegetação rasteira, pedra cinzenta e algumas oliveiras, aqui e ali deixando entrever o mar. De repente, lá em baixo, muito ao fundo, surge Cadaquès, de costas para nós, aninhada no declive à volta da baía que tem o mesmo nome, as casas brancas de telha vermelha iluminadas pelo sol do fim da tarde. E começa o encanto.
Cadaquès é uma localidade pequena com ruas apertadas que vão confluindo até à marginal que acompanha toda a baía. Aqui as casas encostam-se umas às outras, estreitas e altas, com janelas rasgadas para o mar, paredes brancas em que a nota de cor só é dada pelos telhados e pelos caixilhos e estores das janelas, portas e varandas – vermelhos, verdes e azuis em todos os tons. As de traça antiga misturam-se com as mais modernas, lado a lado em calma e pacífica coexistência. O isolamento natural da aldeia acabou por se tornar num factor positivo. O turismo tardou muitos anos a descobrir este antigo porto de abrigo da comarca de l’Alt Empordà, o que lhe permitiu conservar alguma integridade urbanística, que contribui sem dúvida para o seu encanto actual.
A igreja de Santa Maria domina o conjunto, branca contra o verde das colinas que lhe servem de pano de fundo, linhas simples com vários volumes onde a torre quebra a monotonia e assume um nítido papel de destaque. Construída entre os séculos XVI e XVII, foi reconstruída no séc. XVIII e abriga um magnífico altar barroco. É sem dúvida uma das igrejas mais pintadas por artistas, incluindo Picasso e, claro está, Dalí.
A praça principal de Cadaquès tem o nome de Es Passeig e fica em frente à praia – cuja areia, escura e um bocado pedregosa, definitivamente não convida a apanhar banhos de sol. Quase junto ao areal, de costas para o mar, há uma estátua de Salvador Dalí em pose convencional.
Em Cadaquès em Setembro o mar é calmo, quase imobilizado. Há inúmeros barcos ancorados na baía recortada, em que estreitas faixas de areia alternam com as extensões rochosas em cima das quais se curva e se alonga a Riba Nemesi Llorens, a rua que contorna grande parte da baía. Também há barcos na areia, e até um pescador idoso que de manhã cedo trata das suas redes. Algumas ilhotas emprestam o seu charme à paisagem e uma delas, que fica antes da praia de Sa Conca, tem mesmo uma pequena e deliciosa pontezinha de pedra a ligá-la à costa. A mais famosa, com uma característica forma triangular, inúmeras vezes pintada e fotografada, tem o estranho nome de Cucurucuc.
Aparte isso, Cadaquès é uma típica localidade de veraneio com cafés, restaurantes e hotéis, lojas de todos os tipos e os habituais postais ilustrados e “souvenirs”. Mas consegue mesmo assim manter uma atmosfera ímpar e exclusiva que não contemporiza facilmente com o turismo de massas – Cadaquès não se vende fácil. Frequentada regularmente desde há muitas décadas por intelectuais e artistas, que lhe conferiram prestígio além fronteiras, é actualmente palco de um Festival de Música Internacional, que se realiza anualmente. As galerias de arte são quase uma dezena. E todas as segundas-feiras de manhã se realiza um mercado, que ainda é conhecido como mercado “hippy”, embora a característica que lhe dá o nome já tenha desaparecido há bastante tempo.
Mas a localidade está e ficará para sempre associada a um dos mais polémicos mestres do surrealismo, que uns classificaram de génio e outros simplesmente de louco: Salvador Dalí.
Foi numa pequena casa de pescadores situada na Cala de Port Lligat, do outro lado da península de Cadaquès, que Dalí decidiu instalar o seu refúgio a partir de 1930, fascinado pela paisagem em que ela se enquadrava. Ao longo de quarenta anos acrescentou e transformou a pequena casa branca à sua imagem, decorando-a por dentro e por fora com cores e objectos dos mais díspares, a maior parte deles criados por si. Ali fez o seu atelier e ali recebeu os seus convidados e amigos, na sua maioria nomes famosos das mais diversas áreas artísticas – no entanto, apenas os acolhia nas dependências exteriores da sua casa, à volta da piscina, pois tanto ele como a sua muito amada mulher Gala eram extremamente ciosos da sua privacidade. O casal viveu nesta casa até à morte de Gala, em 1982.
Hoje a casa está transformada num museu, com visitas guiadas e rigorosamente cronometradas, onde tudo está preservado tal como em vida do pintor, excepção feita aos seus quadros e livros, que foram praticamente todos substituídos por cópias, encontrando-se os originais expostos em Figueres, terra-natal de Salvador Dalí. Ao observarmos os vários ambientes onde Gala e Dalí viveram, e com a ajuda de algumas explicações dos guias, ficamos a conhecer um pouco mais a personalidade deste pintor surrealista que tanta tinta fez correr.
É uma casa labiríntica, quase orgânica. Os vários espaços interligam-se uns com os outros, cada um tendo uma função bem definida. Nas palavras de Dalí, era “como uma verdadeira estrutura biológica, (...). A cada novo impulso da nossa vida correspondia uma nova célula, uma divisão”. A entrada faz-se pelo vestíbulo do Urso, onde um espécime embalsamado deste animal, entretanto transformado em candeeiro, impõe a sua presença.
O estúdio de Dalí mostra um trabalho inacabado do artista (um dos raros originais que podemos encontrar na casa) exposto no enorme cavalete especial que ocupa toda uma parede de alto a baixo, engenhosamente concebido por ele próprio para poder trabalhar sempre sentado, independentemente do tamanho do quadro que estivesse a pintar. Também aqui o mar e a luz da Catalunha inundam todo o aposento e criam um ambiente verdadeiramente especial.
Compreendo e partilho a paixão de Dalí por este lugar. É impossível ficar indiferente à magia de Cadaquès.
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